6 de janeiro de 2010

Experimentando Literatura - VII

Hoje, com o calor escaldante, fiquei pensando nas pessoas que migraram para o litoral. Bem aventurados sois, meus caros! Aqui, fico no mormaço e agora acompanhado da chuva. Tudo bem: comecei minhas aulas de violão e tenho várias leituras para me entreter - além do PS2, claro. Isso enquanto a Bibiana trabalha. De qualquer forma, deixarei um textinho de 2002 para leitura alheia.

Jogo de Cartas (2002)


O verão sempre foi rotulado como a estação do ano que traz grandes viradas para as pessoas. É a estação do amor, estação do sol, das ondas, dos protetores solares, cachorros na rua, frutas, etc. Quem diria, também é a estação das cartas. As cartas de jogo mesmo.
Em Atlântida Sul, Júlio tinha sua casa. Não muito grande, mas suficientemente confortável. Alguns cômodos, banheiros, cozinha, área de serviço. Mas ele tinha algo especial: a garagem. Pois é, a garagem. É que lá sempre rolavam os jogos da família. Várias madrugadas em claro, apenas jogando. Sejam cartas, seja tabuleiro, seja videogame. Sempre havia alguma disputa por lá.
Logo após o Ano Novo, Júlio, de Porto Alegre, partiu para o litoral. Lá, já estavam sua mãe e seu irmão mais velho. Levou com ele sua namorada, Ana Clara, e seu amigo do 
peito, Fabrício. Chegando a casa, foram se ajeitando em seus cantos.
Os primeiros dias de verão (afinal, só agora eles estavam de férias, podendo-se dizer isso) foram daqueles bem comuns: caminhada na praia de tardinha, saídas à noite, dormir tarde, acordar tarde. O Fabrício já estava começando a se sentir um tanto deslocado, pois, como a Ana estava sempre com Júlio, mal podia trocar algumas idéias com o amigo. Apenas enquanto ela tomava banho. Isso quando Júlio não levava a toalha para ela.
- Meu, na boa, to começando a me achar meio desentrosado... - desabafa o amigo.
- Ah, guri, não te sinta assim! Quando começarmos nossas disputas à noite, não irá mais querer sair! Hehehe
- E isso vai demorar, por acaso? - questiona, ironizando.
- Ah, é só o tempo dos guris chegarem aí...
Alguns dias se passaram e os tais guris chegaram. Os famosos “amigos da praia”. Todos eram vizinhos, criados juntos desde pequenos. Eram três: o Zeca, o Kiko e o Joca. E eram muito parecidos. Baixos, medianos, morenos, olhos escuros. O que diferenciava eram apenas os traços. Nada mais.
Chega a primeira noite de jogatina. “Finalmente”, pensava Fabrício. Começara a se entediar na casa do amigo. Mas isso logo mudaria.
- E aí, qual a pedida de hoje? - pergunta Zeca.
- Bah, eu tava pensando num fliperama. Não são parceiros de ir até o centrão? - responde Kiko.
- Não sei... Não to muito a fim de pegar o carro agora... - replica Júlio.
- Mas se for por isso, eu dirijo! - treplica Joca.
- Que tu achas, Fabrício? - lança Júlio.
- O que vocês quiserem fica bom pra mim...
- Ah, deixa disso... És nosso convidado, mas não precisa ser submisso...
- Então, sugiro que façamos algo em que nós cinco sejamos colocados na mesma situação.
- Beleza. O quê?
- Conhecem Dorminhoco?
- Evidente... Vamos jogar?
Todos concordaram e sentaram-se à mesa. Pegaram a tampa de uma garrafa de vinho para fazer de “paga-prenda”. Começaram a jogar. Joca movimentava a carta, que chega às mãos de Zeca. Observa as suas e repassa outra para Júlio. O menino pega a carta, faz uma cara de desconfiança e relança para Kiko. Este a pega, troca com outra carta, troca com outra e manda para Fabrício. O convidado relança a carta, que não lhe interessava. Assim se sucedeu por alguns minutos, até que Joca deixa com que suas cartas caiam. Os outros vêem, menos Júlio, que esperava por nova rodada. A rolha foi queimada na ponta. Levou tinta no rosto. Nas rodadas que se sucederam, risadas, técnicas, olhares desfilavam sobre aquelas folhas plásticas. Isso até a Ana Clara chegar na garagem e perguntar se poderia entrar também. Porém, após ver o rosto manchado de todos os garotos e a tampa de vinho em cima da mesa, fala:
- Acho que tua mãe tá me chamando, Julinho...
Os dias que vieram foram de plena diversão. As noites eram repletas de risadas, gargalhadas monumentais. Até que Fabrício diz:
- Pior... Até deu pra esquecer a Amanda...
- Que é isso, guri! Vai ficar lembrando dessa aí agora?
- Justamente... Esqueci!
- Assim que se fala! Voltemos ao jogo!
Fabrício namorara durante quatro longos anos com ela. Porém, ao final do segundo ano, explodindo de amor pela menina, ela o trai com Gil, amigo deles. Agora, não mais. Desde aquela data. Continuaram namorando, pois ele ainda não sabia do acontecido. Apenas Júlio. Relutou em contar, não queria ver a cara de arraso do amigo. Mas não resistiu por muito tempo. Já tinham três anos de namoro, quando contou. Fabrício não creu. Apenas um ano depois se convenceu de tamanha farsa da amada.
Na manhã da quinta-feira posterior, Júlio levantou cedo da cama. A mãe noticiara que seus primos de Tapejara, Augusto e Scheila, estariam na praia dentro de dois dias. O garoto alto, de olhos azuis, não demonstrou muita felicidade ao receber a notícia, mas Ana Clara abriu um enorme sorriso ao saber que sua amiga do interior estava por vir.
Na noite da sexta, os seis resolveram ir para uma festa em Capão da Canoa. Muito movimento, muitas pessoas estavam por lá. A Praça Central do município lotara para ver as apresentações que se dariam. Divertiram-se muito. Joca, inclusive, acabou por conhecer uma menina, Lia, que foi convidada a comparecer no balneário onde veraneavam.
Chega, então, o sábado. Dia quente, cerca de 35°C. Abafado. Propício a um banho de mar. E é o que o pessoal da casa faz.
Enquanto Júlio mergulhava na verde água, Ana Clara conversava com Fabrício, demonstrando toda sua gratidão por ter vindo junto deles ao litoral:
- Nossa relação anda meio desgastada... Entendes, né? Começam aquelas brigas bobas, tudo mais... Achei que seria ótimo ter tua presença aqui... E realmente está sendo!
- Deixa disso, Aninha... O Júlio te ama...
- Eu sei que ama... Mas era melhor para nós darmos um tempinho, mesmo juntos... Eu sei o que ele faz, ele sabe o que faço, mesmo que não estejamos grudados, como antes... Está melhorando a coisa...
- Se você diz... Que ótimo!
- Bah, cara, tu sabe quanto eu te admiro... E te admiro ainda mais por seres o melhor amigo do Julinho... Mas há algo nos teus olhos que traz uma certa tristeza...
As lembranças de Amanda voltaram à tona. Fabrício desvia a atenção e vai ao mar. Mergulha bastante. Vai ao fundo. Ana olha para os dois juntos. Ambos com o mesmo calção preto. Júlio, branco como requer a ascendência de um alemão. Fabrício, moreno claro, alto, físico malhado. Logo regressam, pingando como se trouxessem o mar com eles.
- Olá!! - alguém diz.
- Scheilinha!! - grita Ana Clara.
Os parentes haviam chegado. Fabrício parece ter um lapso. Apenas observa. Júlio cumprimenta os primos. Em seguida, os apresentam ao amigo:
- Cara, esse é meu primo Augusto, baita figura! Beberrão até não poder mais! Hahahaha!
- Prazer, cara! - educadamente, diz Augusto.
- Prazer... - responde Fabrício.
- Bem, e esta é minha prima querida... Scheila!
- Oi... Muito prazer! - timidamente indaga ela.
- O prazer é meu... - mais timidamente ele responde.
- Bah, to louco pra tomar um banho! Vamos nessa, primo? - questiona Augusto.
- Ah, vou dar um tempo aqui, recém saí d’água...
- Ah, tão tá... Vamos, Scheila?
- Vamos sim... Nos acompanha, Aninha?
- Claro!
E partiram os três para dentro do mar. Júlio, sentado ao lado de Fabrício, comenta:
- Bah, meu... Fazia tempo que eu não reparava como a Aninha é linda... Estamos juntos há quase três anos e fui capaz de deixar isso passar... Sempre gostei de menina loira... Ela tem isso... Tem um corpo lindo... Parece feito sob medida... Adoro o caminhar dela, como ela fala, a delicadeza dos braços, a ternura do beijo...
- Oh... Já podes virar poeta! Hehehe
- Pior... hehehe... Mas é sério... Amo-a de verdade...
- Tenho certeza que ela também...
Mas Fabrício não se concentrava na conversa. Apenas em Scheila. Observava cada detalhe. Desde o biquíni listrado em amarelo e azul claro; o tom avermelhado do cabelo; a pele clara, mas já bronzeada pela força dos raios solares; a tez nua, com o sorriso que destacava as belas maçãs da face. Encorpada, mas sem nenhum destaque. Perfeita. Seu sonho. Sua vista.
- Ela tem 23 anos...
- Como?
- A Scheila tem 23 anos, cara... Ela é mais nova que você, mais chances... hehehehe
- Eu falei que queria algo com ela?
- Teus olhos já disseram tudo, parceiro...
E tinham dito mesmo. Estava encantado pela beleza da interiorana. Eles regressam do mar e logo foram para casa.
Fabrício passou o dia todo cuidando a menina. Como ela se movimentava, o que conversava, o que fazia. Pode ouvir que era acadêmica de Geografia da UPF, de Passo Fundo. Estava no penúltimo semestre, formar-se-ia ao final do ano. Professora. Era seu grande sonho profissional. Morava apenas com o irmão, em sua cidade, pois os pais haviam se separado há anos. Com isso, o pai se mudou para Santa Catarina e a mãe, após os filhos terem começado a trabalhar, resolveu começar a vida novamente com outro homem, para os lados da fronteira com a Argentina. Falava muito de novelas, filmes, livros. Lia muito Machado de Assis. Era fã de The Clash, Heart e Boston. Estava sabendo bastante.
Após tomar seu banho, o convidado percebeu que não havia ninguém dentro de casa, mas que movimentações aconteciam nos fundos. A mãe e o irmão de Júlio haviam saído, rumo a Porto Alegre, para ver se descobririam o porquê de o irmão mais novo ainda não ter rumado para a praia. Fabrício sai de casa e vê o portão da garagem aberto. Lá estavam eles.
Zeca e Kiko animavam-se no videogame. Joca, ao lado de Lia, que fora visitá-lo, conversava com Júlio e Ana, que logo diz:
- Aí está o menino do banho demorado!
Ele fica meio sem jeito, mas se aproxima do pessoal. Cumprimenta os guris e lança um olhar para Scheila. Esta não percebe o ocorrido e permanece sentada na mesa, falando ao celular. Pergunta a Júlio:
- E o Augusto?
- Foi com a mãe e o mano pra Porto. É muito estranho não ver o Heitor aqui ainda... Acabou preocupando-se e se ofereceu para dirigir, já que o Jacques tá com o pé torcido...
Desse jeito, era como se o caminho estivesse totalmente livre para que ele tivesse uma conversa mais íntima com a prima do amigo. Lança mais um olhar para ela, que já havia desligado o telefone. Ela percebe, mas sente-se encabulada. Um leve sorriso.
Já era 1h, quando Júlio resolve gritar:
- Hora do jogoooo!!
E assim foi. Sentaram-se todos a mesa. Ana, Júlio, Zeca, Scheila, Joca, Lia, Kiko e Fabrício. Propuseram uma partida de Mau Mau. Na concordância de todos, resolveram começar. As cartas eram postas à mesa. O jogo rolava. Quem ficasse com a maior pontuação nas cartas deveria pagar uma prenda.
- Mau mau! - diz Ana.
- Não, meu bem, pega uma mais. - fala Júlio, após colocar um nove na mesa.
- Mau mau! - também diz Zeca.
- Ih, meu Deus... Preciso de mais uma carta... - diz Scheila, rabiscando um olhar para Fabrício.
- Certo... Vamos dar mais emoção a isso... - Propõe Joca, ao lançar um sete sobre as cartas.
- Mais sete, então! - diz Lia.
- Putz... Pobre Fabrício! - ironiza Kiko, colocando outro sete sobre a mesa.
- Bah... Que droga! - esbraveja Fabrício, em meio às gargalhadas dos amigos e o olhar tímido de Scheila, pegando suas nove cartas do baralho.
- Mau mau de novo! - diz Ana.
- Mau mau! Só mais uma carta! - coloca Júlio.
- Vai essa... Mau mau! Venci! - vibra Zeca.
- É, vamos contar os pontos... Mas acho que ficará a decisão entre o Fabrício e a Scheila, sobre quem tem mais pontos! - ironiza Júlio, olhando Fabrício com um curto sorriso.
Contaram e recontaram os pontos, um a um. No fim, empataram. Fabrício e Scheila teriam que pagar um vale. Ou uma prenda.
- Vão lá fora e decidam o que fazer! - dispara Ana.
Fabrício fica extasiado. A menina vai até ele, pega-o pela mão e o leva para fora. Quando saíam da garagem, Scheila rouba-lhe um beijo. Fabrício achou estranha a atitude da moça, que permanecera tímida até então.
- Bah, cara, desculpa... Não consegui mais controlar... - fala ela.
- Não te preocupas... Eu já estava querendo isso mesmo...
E beijam-se novamente. Dessa vez, um caloroso e longo beijo. Mal haviam trocado palavras, durante o tempo em que estavam juntos. Um “com licença para cá”, “por favor” para lá, olhares profundos, tímidos, mas com um único ideal: a conquista do próximo. Adoraram-se desde o primeiro momento em que se viram. E, pelo jeito, continuariam se adorando.
De repente, Ana Clara sai da garagem para saber por que demoravam tanto para voltar. Logo, vê a bela cena. Pensa consigo:
- É, Fabrício... Estamos em pleno veraneio... Deixa a Amanda congelar num inverno distante... Mantenha-se nesse novo fogo, pois o verão ainda te trará tudo que mereces.
E assim foi. Dias e dias passaram e a conquista tornou-se realidade. Ambos juntos, aproveitando o tempo que tinham. Pouco tempo. Fabrício deveria voltar para a capital, enquanto Scheila teria de retomar estudos e contato com os pais em Tapejara. Quando da despedida, tristeza. Mas uma tristeza feliz: Fabrício pôde livrar-se do fantasma de Amanda e descobrir que uma nova conquista é dada quando fazemos algo por tê-la e, assim, poder se aproximar do próprio ideal de felicidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário