7 de fevereiro de 2010

Mundo em alarde, final harmônico: mais uma fuga catabórica

Dando uma pausa aos escritos sobre os livros lidos no litoral, li agora à tarde um livrinho curto, mas muito interessante: Hotel Atlântico, do João Gilberto Noll. Através da orelha escrita pelo Nei Duclós, o enredo me atraiu e parti para a leitura. Novamente, uma obra que remete à pergunta cabal: o que acontece com o mundo que transforma seres humanos em meras sobras de sua criação?
O personagem principal é um ator desempregado que vendeu seu carro e passou a utilizar o dinheiro circulando pelo país. Do Rio de Janeiro para Florianópolis; de lá, para cidades desconhecidas do interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, até chegar a Porto Alegre e partir para Pinhal. É um circuito bastante curioso, tendo em vista que ele é sempre rumo para o sul, para baixo, para o negativo, e termina na direção oeste,  em direção ao início do ciclo solar, estável, tal como a linha de morte das máquinas que alertam sobre os batimentos cardíacos - a morte da personagem.
Escrevi uma vez sobre esse assunto, há alguns anos, e fora publicado no site da Unesp, na seção Debate Acadêmico. A fuga catabórica é a descida rumo ao sul, o que, miticamente, revela a morte como solução para problemas enfrentados por alguém. O curioso da narrativa é que a personagem é perseguida pela morte constantemente, pois, por quase todos os locais por que passa, alguém morre. No início da narrativa, quando ele chega a um hotel no Rio, há um morto. Ao final, ele é o morto. Essa fuga não é feita ao deus-dará, mas em busca de seu espaço sagrado. Zelita Seabra, na obra Tempo de Camélia, já dizia que todo o homem necessita de um espaço sagrado para poder se identificar enquanto ser; sem a existência de um espaço apenas seu, como uma casa, um quarto, uma praça, uma árvore ou uma caixa de papelão, o homem não existe perante o próximo. Ocorre isso com o ator, que passa a narrativa sem uma mochila ou sacola sequer, sem carregar nada, a não ser os trocados na carteira, que o fazem comer e viajar. Seu ciclo, enquanto catabórico, é odioso, já que até uma perna tem amputada devido aos problemas de seu caminho. Envolve-se sexualmente com várias mulheres, mas nenhuma o faz se prender ou amainar, tornando os vínculos totalmente fugazes. A vida do ator se esgota quando parte do hospital em que ficara no interior, em Arraial, e parte rumo a Porto Alegre, para depois ir a Pinhal. No litoral gaúcho, ao acordar na manhã em que acompanharia Sebastião - técnico em enfermagem que o ajudou a sair do hospital e que queria conhecer uma praia - na ida ao mar, ele passa a perder os sentidos. Quando vê a água, lê nos lábios de Sebastião a palavra mar, sente que é hora de descansar.
Comprova-se a fuga catabórica e a existência de um mundo cão para o homem. Não sabemos o que houve de vida anterior à narrativa - apenas alguns poucos detalhes, como onde e em que trabalhou o ator, além da venda do carro e de não ter parentes no RS, de onde saíra aos vinte e poucos anos -, entretanto vemos um mundo totalmente cruel, seguido de mortes - assassinatos, suicídios, velhices - que é tragado pela personagem. Quando uma boa alma o leva para longe daquilo, estabiliza sua vida, viaja ao oeste, ele sente que já não é mais hora de seguir. Finda-se a narrativa: ao termos a salvação, nada mais precisaremos realizar.

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