9 de fevereiro de 2010

Dama de vermelho sobre fundo cinza

Obras feitas através de relatos são, pra mim, algumas das que mais se aproximam dos movediços conceitos de Literatura que encontramos. Textos como os de Antônio Carlos Resende, por exemplo, são muito bons, nesse sentido. Lembro quando li Magra, mas não muito, as pernas sólidas, morena, lá em 2005, pra uma disciplina da especialização em Literatura Brasileira: a professora me elogiou pela escolha, ainda mais porque ela estava em Cachoeira do Sul na época em que se falava dos tais acontecimentos. Foi uma síntese dada pelo então juiz de direito, José Paulo Bisol. Falava sobre um caso de um mísero budegueiro de estrada que se apaixonou por uma mulher esplendorosa. O simples budegueiro foi na casa da mulher entregar o rancho e deu uma "cantada" nela, fazendo com que a mulher colocasse um processo em cima dele.
Agora, li Dama de vermelho sobre fundo cinza. O escritor espanhol Miguel Delibes revela a inconstância de um artista através da doença da esposa, um tumor num nervo ótico o faz revelar toda sua dificuldade em produzir suas obras. Um cidadão mais apaixonado que lesse o texto diria que a motivação para as produções era o amor que surtia pela esposa. Em verdade, o narrador admite isso, quando, quase ao fim da vida, ela lhe pergunta se os anjos não mais desceram para o auxiliar nos quadros, o que o faz desatinar em choro e lhe dizer que era ela sua inspiração. Perde-se o narrador ao admitir, no início da obra, sua difícil capacidade de concentração para fazer algo. Ele tem lapsos de criação, ou seja, num determinado momento se sentia apto a pintar as telas e corria para seu pequeno estúdio. Após ganhar dinheiro com as obras e ser convidado a participar de uma alta instituição de belas-artes, reforma a casa e o estúdio que lhe é feito, de tão organizado, perde sua essência; por conseguinte, sua fluidez em criar. Ao morrer a amada, julga que teria sido melhor, pois sua aparência nunca mais seria a mesma. Como o texto se volta várias vezes para a questão estética, envolvendo a pintura e a beleza humana, é como se o criador não conseguisse realizar nada que suprisse a beleza da mulher, tendo ela como protótipo de perfeição.
Algumas discussões podem ser levantadas em torno disso, mas creio que a principal seja a perda da identidade. A dama de vermelho era sua esposa, pintada por outro artista, que deixava o narrador com muito ciúme. Suas obras não valiam, seu trabalho não valia, se não tivesse o aval da esposa. Toda ela era seu foco, onipresente. Essa fixação constante faz com que seu relato seja, além de parcial, um retrato da falta de ação do homem ao se envolver com tal mulher. O amor desenfreado desefreou o ser-narrador, desmontou-o e criou um ser-esposa. Voltado a ela, não podia realizar ações que se voltassem a si, simplesmente. Por isso, possivelmente, que no final ele diga que talvez tenha sido melhor sua partida. Confirmando isso, certamente o seria, pois voltaria à individualidade, não um ser isolado do mundo, mas voltaria a ser quem sempre fora.
É curioso como a arte se envolve com isso, tendo em vista que essa é a expressão da intimidade, do individual. Se ela não aparece, seria pela prisão ao outro, no caso da obra. E quando nós não avançamos, seria em relação a quê? Ter-se-ia de procurar uma explicação voltando-se para si mesmo, a fim de descobrir o que nos compõe, explicando nossas realizações - e a falta delas também.

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