23 de junho de 2010

Sobre a morte de José Saramago

por Luciano Oliveira *

O título deste artigo é uma evidente brincadeira com o ateísmo militante de Saramago, agora que o grande escritor português morreu. Se seu espírito partiu desta para outra ou, como ele incisivamente acreditava, tudo o que um dia se chamou José Saramago  carne, fluidos, desejos, ossos, inteligência  agora virou literalmente cinzas, nunca nenhum de nós saberá, porque tudo isso pertence agora ao Grande Mistério. Devo dizer que conheço pouco sua obra. Mas me lembro ainda hoje de um longínquo carnaval em que, refugiando-me já da ruidosa folia que só fez piorar desde então, li, maravilhado, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Era um grande escritor, dono de um estilo todo seu que o leitor identificava assim que lia as primeiras linhas  da mesma maneira que três acordes identificam a música de um Piazzolla, por exemplo. Foi um desses autores que invertem o gesto do leitor que larga o livro quando quer: o texto dele nos agarrava!
Isso é uma coisa. Outra são as idéias desse renitente comunista e ateu português. Sei que de acordo com um velho fair-play  afinal de contas o defunto não está mais aqui para se defender , não se deve falar mal de quem acabou de falecer. Mas, no caso de figuras públicas, suas ideias como que se despregam da boca que as enunciou, passam ao domínio público e, nesse espaço, é legítimo, sim, delas discordar; e, até, reafirmar tal discordância exatamente num momento como esse em que a morte, com o seu poder de beatificação, produz uma espécie de culto ao grande morto, como se tudo o que ele tivesse dito merecesse devoção.
Não é o caso. É preciso lembrar que Saramago, politicamente, protagonizou, antes de escrevê-lo, seu próprio “ensaio sobre a cegueira”! Apenas em abril de 2003, depois que o regime caquético de Fidel Castro fuzilou três desesperados cubanos que seqüestraram um barco de turistas numa tentativa mambembe de fugir da Ilha  uma operação em que ninguém saiu ferido e deu literalmente com os burros n´água  é que Saramago escreveu um artigo em que declarava seu afastamento do regime cubano com uma frase que ficou famosa: “Até aqui cheguei”. Chegou tarde. O mais surpreendente é que, a despeito disso, continuou proclamando-se um comunista de velha cepa, como se o stalinismo, o maoísmo e todos os milhões de mortos que esses regimes produziram fossem desvios de percurso, e não algo inscrito na lógica mesma da ideia estapafúrdia de produzir um “homem novo” através de um regime político. Como disse certa feita outro grande escritor, Graham Greene, “a inocência é uma forma de insanidade”…
Voltando ao assunto sugerido pelo título, há algo de primário no ateísmo militante em que o morto parecia se deleitar. Crenças são crenças e é difícil argumentar racionalmente a respeito delas. Descrenças, também. Mas certas provocações de Saramago eram tão ásperas que pareciam ecoar um vetusto anticlericalismo de comunista português que passou boa parte da vida adulta vergado sob a ditadura beata de Salazar, à qual nunca faltou a bênção da Santa Madre Igreja. A ideia de Deus como o “maior absurdo” criado pelo “cérebro humano”  palavras suas  soa gratuita e, metafisicamente falando, é primária, porque nada resolve acerca da questão fundamental do próprio Ser  que já atormentou a cabeça de tantos filósofos: por que existe algo ao invés de nada? Noutros termos, por que o universo existe? Questão intransponível. Despercebida pelo homem comum, ela interpela a certeza do ateu que acha absurda a existência de um Deus incriado, mas não nota que a existência de um mundo sem Deus, por conseqüência também incriado, é igualmente absurda! A questão atormentou Aristóteles, que a resolveu através da hipótese  incorporada, aliás, à teologia cristã por São Tomás de Aquino  do “primeiro motor”, espécie de exigência lógica para o pensamento salvar-se do bloqueio em que a questão o mergulha.
Outra provocação lhe era particularmente cara, a de que as religiões, “sem exceção”  as palavras são igualmente suas  “fizeram à humanidade mais mal do que bem.” Trata-se de uma afirmação, como diria o filósofo Karl Popper, “infalsificável”. De um lado porque não se conhece sociedade humana que não tenha tido religião. Então, como comparar?  como saber se a ausência de religião produziria um mundo em que há mais bem que mal? Europeu e, portanto, inserido na tradição judaico-cristã, Saramago, ao dizer essas coisas, provavelmente tinha em mente instituições como a Santa Inquisição e eventos como as guerras de religião que ensangüentaram a Europa durante muito tempo  aquela e estas, de fato, coisas más e, aliás, muito pouco cristãs! Mas disso pode-se deduzir que o sentimento do sagrado não foi igualmente responsável por coisas boas? A Santa Madre, por exemplo, não gestou apenas a intolerância de Santo Inácio de Loyola, abrigou também o infinito amor por todas as coisas de um São Francisco de Assis. Aliás, saindo da órbita ocidental, o que dizer do Budismo  segundo o qual os homens não têm o direito de fazer mal sequer a uma minhoca?…
Deixemos tudo isso de lado. O grande escritor está morto e não mais escreverá. A mão que compôs com tanta humanidade o Evangelho Segundo Jesus Cristo não está mais aqui. Mas o livro está! Invertendo o que disse Drummond, “as coisas lindas, muito mais que findas, estas ficarão”.

* Luciano Oliveira, Recife, é professor de sociologia da UFPE.

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