20 de junho de 2010

Amor e equivalências demoníacas

Como dissera, um de meus alvos nesses dias inóquos foi Do amor e outros demônios, do Gabriel García Márquez. Num dia, à noite, tossindo e sentindo moleza pelo corpo, peguei dois livros para ler, dentre os quais o citado. Uma leitura inquietante, apesar de momentos mornos, repleta de seres que só podem fazer parte da literatura fantástica.
A obra trata sobre uma menina que fora desprezada desde a infância por pais que nunca se amaram. Um cão raivoso a morde e tudo parece se encaminhar para a morte da menina; pelo contrário, quem morre é o cachorro. A partir daí, a narrativa toma contornos sobre-humanos, pois se passa a crer que Sierva María está dominada pelo demônio.
Surge a figura inquietante do Padre Delaura. Servo do bispo local, ele é convocado a exorcizar o corpo da moça. Excentricamente, o pároco se apaixona pela possuída, com quem deseja ter uma relação intensa, porém se reprime diante de sua condição eclesiástica. De qualquer forma, em dada altura da narrativa, ambos ficam frente a frente, postos em prova seus sentimentos, para a redenção acontecer.
O amor entre o padre e a moça denota diversos demônios. O amor é o principal deles, tendo em vista que as imagens são mais claras do que os sentimentos representados: o pai e a mãe de Sierva María têm um casamento de fachada, já que ele era um nobre que não obteve seus ideais amorosos quando mais jovem, casando-se com idade avançada e com uma mulher muitos anos mais jovem que o despreza. Levando em conta o péssimo relacionamento e a gravidez dela, passam a se odiar ainda mais, jogando no feto todas as atrocidades que diziam um ao outro. Assim, Sierva fora jogada aos escravos, que a cuidaram e a tornaram comum. Outro demônio presente na obra é a veneração religiosa como preconceituosa e distante da dos escravos. Um dito amor transcendente que não aceitava a religião alheia e promovia bizarras circunstâncias as quais os escravos eram obrigados a ter. Padre Delaura é outro que sofre por isso, pois crê no amor de Deus antes da fé, mas deve servir ao que seus superiores o indicam. Outra situação, para não me delongar, é a da própria Sierva: o amor pela cultura dos escravos é demonizada, transformando-a num ser totalmente privado de suas vontades por não poder exacerbar seu desejo.
Entre inúmeras circuntâncias de aproximação entre o amor e o demônio, parece ficar de lado o inchaço no tornozelo de Sierva, o que fora mordido pelo cão raivoso. Como ela é cuidada, a mancha vai desaparecendo aos poucos, salvo cuidado do Padre Delaura. O único amor não demonizado é o que não se concretiza, pois Delaura é retirado de suas operações na região. Sierva não pode ter nem seu amor, apesar de tantas ações estranhas e discutíveis que ela rege no decorrer do enredo.
Assim é a obra de García Márquez. Quem nunca leu, deve um dia ter uma oportunidade para isso. O rosto selvagem com que são pintados os personagens alivia a degradação do homem contemporâneo, já que colocá-lo na condição em que deve se encontrar futuramente parece muito mais suave do que ver toda sua derrocada. Dessa forma, reforça-se a ideia de que esse tipo de leitura reflete nossa realidade. Ainda mais quando percebemos que há muito mais demônios do que amores presentes em nossas vidas, sejam esses velados ou expostos.

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