25 de dezembro de 2009

Experimentando Literatura - III

Para terminar esse Natal no blog, coloco um texto de 2002. Tive uma professora na faculdade que resolveu virar freira. Acabou motivando um pequeno texto.


À santidade (2002)




            Sorrir. Era olhar para um lado, para outro, e a encontrava. Sorrindo. Sempre. O olhar brilhante, a voz em suave calmaria, serena. Explanar a paixão que sente pelas coisas que faz não é uma tarefa simples para os seres humanos. Para ela, isso era singelo.
            A professora expelia palavras encorajantes. Essa sua coragem de mostrar o rosto, deixá-lo descoberto para as surras que levaria pela vida foi sua marca mais evidente. O gosto doce de suas idéias apaixonava seus alunos que se sentiam cada vez mais envolvidos pelas idéias convictas e relevantes dela. Convicção era sua Superiora. A descrença, o inferno.
            Certa vez, um sonho lhe desperta. Uma luz, umas pessoas voando, camisolas, penas. É. Talvez retocasse seus líricos pensamentos com pinceladas de magia, inigualáveis pensamentos que a tornariam uma pessoa que, se não atingisse a perfeição a todas as vistas, atingiria sua opção maior: ser feliz.
            Foi quando o sonho se tornou realidade. Os pensamentos voaram. Tomaram forças colossais e fizeram brotar um desejo jamais imaginado. Aquela criatura lúdica, crente de si, crente da vida, crente de suas idéias, agora era crente. Um mar de lágrimas brotou por seus olhos. Era o reinício de uma caminhada que traria sua felicidade suprema, sua tranqüilidade eterna.
            Chega em sala de aula, comunica seus alunos. O espanto é tal que faz com que eles fiquem boquiabertos. E a singeleza ainda imperava. Um tanto abalada devido à emoção, mas continuava intacta. Dissertou sobre o porquê daquela decisão que soava como fantasmagórica aos pupilos, mas que logo foi entendida. Ela queria apenas encontrar sua felicidade.
            Como em todos os momentos em que esteve com eles, a professora proferiu seu emocionado e ideológico discurso, carregado de beleza humana e palavras artísticas: “Vocês não podem ser apenas professores de gramática normativa, aliás, não devem: devem criar, buscar o novo, ousar! Utilizar a posição de vocês, como professores, não para imperar e dizer o que é certo e o que é errado, mas para estimularem seres pensantes! Trazer à essas pobres criaturas, que hoje são esmagadas pelo sistema, um conhecimento que lhes sirva para a vida, não para o mecanicismo...” - e, após alguns segundos de silêncio, diz: “Espero, apenas, que vocês sejam educadores de verdade”.
            A despedida emocionada seguiu-se, com o forte abraço e o carinhoso beijo que cada um de seus futuros colegas (que, talvez, não mais seriam) lhes deram. A retribuição vinha em lágrimas, mas lágrimas de alguém que lutou por um ideal que, em sala de aula, com seus estudantes, via ser atingido. Era uma despedida fraterna, tão meiga que nem o mais duro dos doutores ousaria evitar se emocionar.
            Foi então que, nessa hora, alguma luz, de muito distante, brilhou para a professora. Uma luz de intensidade enorme, mas só ela via. A luz de que o momento de sua decisão final estava de fronte a si. Era a luz da decisão. Decisão tomada. Ela se dirigiu para a janela, ainda com os acadêmicos na sala. E, bem baixinho, com o reflexo da luz no olhar, pôde dizer: “É isso, sim”.
            Todos foram embora. Apenas ela ficou lá, relembrando seus momentos de alegria intensa, de trabalho intenso, de harmonia intensa entre si e seus colegas de sala. De súbito, uma sombra vem à porta e fala: “Vamos! O céu não pode mais esperar”.
            Feliz, ela sorri. Estende a mão para que seja levada por esse alguém até seu desejado lugar. Não lhe busca. Levanta-se, caminha em direção à saída da sala. Vê que a faculdade ainda tem pessoas circulando. E vê que a luz não pára de brilhar para si. Volve, arruma seu material e vai embora. Embora. Simplesmente embora.
            Chega em casa, um pouco cansada. Já tinha preparado quase tudo. Faltou apenas guardar o material que usara para trabalhar no dia, na estante da sala de sua residência. Todo seu material, seus anos de trabalho, alojados naquela estante. Vê tudo aquilo e pensa: “Valeu a pena mesmo”.
            Pega as malas, curva-se em direção à porta. O filho, não mais em casa, deixa-lhe um bilhete dizendo “com carinho, seu filho”, apenas. Sorrindo, guarda o bilhete e sai. Ainda olha para dentro, buscando algo que talvez tenha deixado para trás. Nada mais havia. Apenas as lembranças. Que também levava junto.
            Ao colocar seu pequeno pé na rua, sente uma estranha sensação. Uma sensação de medo, de perda. Mas também era uma sensação de ternura, de felicidade, de vida. Principalmente de vida. Às entranhas deleitando a noite, via com o olhar baixo que estava fazendo a coisa certa, mesmo que incerta. E foi nesse momento que ela começou sua caminhada, a mais longa de toda sua vida.
            A luz novamente brilhou. Agora, com mais intensidade. Viu tudo embranquecer perante suas vistas. E a voz clamou: “Vamos! Está na nossa hora!” - E, lá de cima, provido da infinitude do céu, a luz em forma de braços gigantes desceu sobre a Terra, estendendo suas palmas para que ela, cada vez mais feliz, pudesse deitar seu corpo, sendo levada para lá. De súbito, a luz apagou. Apenas as estrelas mais brilhantes permaneceram acesas. O clarão baixou. A rua silenciou. Voltou-se ao normal.
            É. Eu tive um sonho. Um sonho em que todas as pessoas conseguiam sua felicidade plena. Um sonho em que o mar banhava as belezas marinhas e terrenas; em que o céu brilhava na escuridão mais profunda; em que a Natureza sublimava encanto pelo mundo a fora. Mas só ela teve seu sonho realizado. Porque soube sempre o que quis. Porque soube sempre qual era seu ideal. E era, singelamente, ser feliz.

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