22 de dezembro de 2009

Experimentando Literatura - I

Já tive uma fase mais intensa como escritor. Isso aconteceu quando eu tinha uns 16, 17 anos. Na época, fiz um livro. É. Um livro. Tinha o original guardado num disquete. O advento tecnológico que afetou minha residência fez com que eu o perdesse e nunca mais soubesse de seu paradeiro. Azar. Não era grande coisa mesmo.
De um tempo pra cá, alguns alunos pediram para ler o que eu fizera. Os textos que aqui exporei são da época dos 20 anos. Não que faça muito, mas a gente sente a diferença do que é e do que poderia ser o escrito. De qualquer forma, manterei o texto original, sem modificações, para saberem quem foi o escritor Lucas dos primeiros anos. Sei lá, vai que alguém inventa de me estudar um dia...
Boa leitura!




Caixinha de Música (2002)


Abre-se a porta. O vento ecoa através das frestas da janela da sala. Ele penetra em seu apartamento, pega alguns restos de jornal e tenta fazer com que o silêncio predomine. Em vão. A força da natureza é mais forte que a vontade do homem.
Ao entrar em seu quarto, despe-se. O paletó, a gravata, a camisa. A cinta, as calças, as meias. Deita-se. Sente o corpo flutuar na cama, como se há anos não deitasse. Liga o rádio, ouve algumas notícias, mas logo enoja do que escuta. Inflação, dólar em alta, desemprego; guerra, assaltos, assassinatos. Desliga o rádio. Levanta-se, abre a porta do armário, olha-se no espelho. Vê a barba crescer, sem querer cortá-la. Ou sem força para tal. Declina a cabeça, volve. Vai para a cozinha. Atravessa o corredor escuro até lá chegar. Onze da noite. O telefone parece tocar. Mas não toca. Abre a porta da geladeira. Vazia. Contém apenas uma garrafa d’água e uns docinhos que sua mãe deixara em sua última visita. Há um mês. Resolve beliscar alguma coisa. Mas os doces já não prestavam. Cospe tudo, bota para fora. Uma gota de sangue. Sente o palato machucado. Um arranhão. Nada demais. Limpa a boca na própria cozinha, após alguns gargarejos. Retorna ao quarto.
A vida de Marcelo tornou-se um grande tédio. O trabalho, a faculdade. Dois anos separado da ex-esposa. Desde então, sozinho. Não tiveram filhos. Ela sonhava. Ele não quis. Pensava apenas no trabalho, na faculdade. E no corpo da Amélia. Ana sabia de seu tesão pela colega, mas nunca deu importância. Até o momento em que os pegou juntos em pleno lar. No dia seguinte, o crepúsculo da tristeza. Que se arrasta até esse dia.
No quarto, encontra um osso de frango. Roído. Deveria ser bastante velho, pois o Toby saiu de casa com a Ana. Velho Toby, deveria estar com seus 13 anos quando ele o viu pela última vez. Adorável.
De repente, um ruído. A porta abre-se. Sem tocarem-na. Marcelo levanta-se, vai até a entrada de casa e nada vê além de um vulto negro descendo as escadas do pequeno edifício. Deveria ser seu vizinho do apartamento defronte ao seu, um homem trabalhador, que construiu a vida a duras penas. Gostava muito dele.
Após fechar a porta, retorna, novamente, ao quarto. E, no auge da solidão, ele procura algo que lhe afague. Computador, televisão, música, filme. Nada. Nada lhe atrai. Nada o faz concentrar-se. Abre o guarda-roupa, revira, tira suas roupas, busca algo que nem ele sabe o que é. Durante essa tentativa desesperada, caem duas prateleiras do móvel. Algo bate com força no chão. E uma música começa a tocar. E, de súbito, o ambiente torna-se ainda mais melancólico. Ele, estagnado em sua posição, sente o desespero subir pelas entranhas. Olha para o chão. Uma tampa de um lado. A caixa de música do outro. Então, inclina-se. Pega a tampa, com a borda quebrada. Ali, continha um espelho. Agora, um espelho rachado. E se vê, em dimensões distintas. De um lado, aparecia a testa, lisa e sem qualquer marca da idade; do outro, a sua barba por fazer, a boca rosada, um tanto avermelhada pela mancha de sangue que ficara. E, próxima, a caixinha de música, com um protótipo de casal recém casado dançando sobre essa. Marcelo deixa a tampa cair no chão, concretizando o estilhaçar do espelho. Observa a caixa. Sente a música entrando em seu ouvido. Uma lágrima lhe escorre o rosto. A dor enlaça seu coração. Era como se uma nuvem cinzenta pairasse sob a residência do desiludido homem. E ele não tinha mais saída.
Levanta-se do chão, pega o objeto sonoro e arrebenta-o contra a parede. Mas a música não pára. Pega-o novamente e joga-o pela janela. Mas a música não pára. Ele quer sair, ele quer correr, mas ele não escapa. Não escapará.
Ainda sob forte emoção, veste-se. Meias, calça, cinta. Camisa, apenas. Traja os sapatos. Lava o rosto. Mais uma gota de sangue acaba por sair de sua boca. Não dá a mínima importância. Limpa na camisa. Pronto, abre a porta de casa. Esquece-a aberta. Desce as escadas. E, desde então, nunca mais tiveram notícias.

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