Amanhã é dia de comemorarmos a passagem de mais um ano. Não estarei presente para dividir algumas ideias sobre tal situação, portanto desejo um grande 2010 a todos! Não fiquem apenas na frente da televisão curtindo fogos: pensem. Reflitam sobre o que acontece no dia a dia de vocês e no que desejam a partir de agora.
Tenho uma cadela, a Fiona, há mais de três anos. Totalmente brincalhonha, medrosa, cheia de vontade de comer e de passear. Hoje, inclusive, vamos para o litoral curtir o Ano Novo - apesar de ela não ser nada fã de fogos de artifício. Extremamente fiel, ela não me deixa: sempre que fico até tarde fora de casa, minha mãe - com quem deixo a Fi durante o dia - me liga, dizendo que a cadela não pára de chorar à porta. É mais ou menos isso que conta a história de Hachiko.
Esse nome japonês é de um cão que foi adotado numa estação de trem. Seguia árdua e apaixonadamente seu dono até a mesma estação, quando este ia trabalhar. Certa feita, ele morreu. E o cão continuou indo todo dia ao seu encontro no lugar. Pena que isso nunca acontecia. Morreu aos dez anos, sendo que em oito ele estivera presente, à espera do retorno do dono.
A história - fato real ocorrido no Japão, nas décadas de 20 e 30 do século passado - foi transformada em filme, intitulado Para sempre ao seu lado. Nome melhor, impossível. As cenas são de emocionar do início ao fim, pois a disposição do cão em reencontrar Parker, a personagem principal, é de uma incrível lealdade. Se o remake real traduz o que realmente aconteceu, estamos falando de uma cumplicidade que o ser humano, em geral, não tem pelo seu próximo.
Meus alunos sabem que tenho cachorro, que adoro, e uma vez certa menina me contou sobre a situação de sua cadela: paraplégica, chance de ser sacrificada. Aquilo me doeu, mas o que poderia ser feito pelo bicho? Ela soube dos protótipos de rodas que eram feitos pra animais e seus pais resolveram comprar. Não pela especificidade do caso, porém é curioso como pelos animais o homem faz mais do que pelo próprio homem...
Lealdade, segundo o Wikipédia, "é o atributo ou a qualidade de quem ou do que é fiel (do latim fidelis), para significar quem ou o que conserva, mantém ou preserva suas características originais, ou quem ou o que mantém-se fiel à referência." Hachiko sentou-se no mesmo lugar durante oito anos, à espera de seu dono, pois fora lá que sempre se encontravam para caminhar até em casa. Era no caminho que ganhava a atenção de todos, do dono do cachorro-quente de esquina aos transeuntes escassos da região. Passou a morar lá, pelo único fato de esperar a quem realmente era leal.
Creio que isso nos obrigue, em Ano Novo, a refletir sobre qual é nossa situação perante o próximo. Ser leal? Estar leal? Buscar lealdade? Realizar lealdade? É um foco a ser respondido, mas que refere a toda importância que podemos ter pra alguém. Se a Fiona pode chatear os outros durante a noite, chorando pela minha ausência, se Hachiko pode esperar noites e dias a fio pelo seu dono, por que não podemos retribuir essa lealdade ou expandi-la para o homem? Talvez porque saibamos que o amor do animal é incondicional, enquanto o homem pena para não demonstrar seu interesse pelo que possa receber.
Ontem passei o dia pensando no que escreveria. Acabei mal sentando direito na frente do computador. Era dia de ir ao sindicato, saber que verbas tenho a receber, assinar rescisão de contrato e tudo mais. É, é uma pena que o cursinho tenha terminado. Um projeto tão bom e que não teve sequencialidade.
Isso me fez pensar em cacoetes. Essas malditas expressões que volta e meia acabamos por repetir, seja por mania, por intenção ou por desleixo. Na formatura de Ensino Médio da escola, esse ano, os educandos fizeram uma homenagem muito bonita aos professores: um vídeo, falando de suas particularidades. Ao chegar no meu nome, admirei-me bastante com as falas, mas não pude deixar de prestar atenção nisso: "é, professor... sessenta e sete 'né' numa mesma aula é um feito!". Pois é. Minha velha intenção de tentar manter os alunos ligados na minha fala se reverteu em uma ironia bem interessante. O que mais marca o estudante? Aquilo que tentamos mediar, construir como conhecimento ou nosso jeito de ser, nossas manias e atitudes?
No pré-vestibular, bem como na escola, quando um aluno vinha com uma desculpa esfarrapada ou com aquelas carinhas de "pidões" ou qualquer coisa que fosse pedida, respondia a eles: "lamentável, hein, Fulano?". Tanto virou costume que já há quem faça isso em coro pra mim. Agora, aposto que se fosse para saberem por que diabos aquela vírgula está mal colocada, ah, aí seria diferente. Ah, alunos...
É, portanto, lamentável dizer que essas doces criaturas não se espelham na gente. Não como ídolos explícitos ou seres superiores, mas como aqueles que detêm o conhecimento a ser instrumentalizado. O educando não busca apenas aquele que sabe mais, mas aquele que sabe fazer pensar mais. E, de quebra, se preocupa com as suas atitudes mundanas, seus defeitos e suas qualidades. Né?
Aproveitando o embalo de O outro, que li numa sentada ontem pela manhã, vou postar um textinho que me lembrou a história. É lá de 2001 também. Ah, e esse existe.
Paciência de anos (2001)
Era uma calorosa tarde de domingo e Natasha estava lá, na frente de seu computador, datilografando um trabalho para a faculdade de Ciências Sociais, cuja fazia há três anos. Ela, esbanjando seus vinte e oito anos com muita saúde, não esperava que aquele dia mudaria para sempre sua vida.
Toca a campainha. Ela sai do quarto, atravessa o apartamento situado na Bela Vista e vai atender a porta. Era Bruno, um homem alto, esbelte, encorpado que Natasha não via a cerca de dez anos. Seu grande amor do passado. Ele pede para entrar e ela não lhe responde, mas logo dá a trégua. Sentam no sofá da sala, conversam por alguns minutos. Bruno fala que esteve fora do Brasil por cinco anos, pois fora trabalhar com seu pai numa empresa agronômica argentina, que lhes remuneravam muito bem. Porém, Natasha não se dá por satisfeita e indaga o homem:
- Mas e o que você sentia por mim, Bruno? E o q eu sentia por você? Onde ficou?
- Continua nos nossos corações, Natasha...
- Não, não pode ser... Sumiste por dez anos!
- Eu queria ficar...
- Saia já daqui, Bruno!!
Ela se levanta e abre a porta da rua. Bruno, num gesto que jamais houvera feito, tira a mão da mulher da maçaneta, bate a porta. Ela, já irritada, tenta se soltar dele, mas a força do homem não permite que ela consiga tal coisa. Para repreendê-la, ele a deixa contra a parede, segurada pelos pulsos. Foi a primeira vez que ficaram tão próximos como em anos anteriores. Ele se aproximava mais, ela se acalmava. De repente, o beijo. Aquele beijo tão doce, tão meigo que não acontecia há anos. As línguas se entrelaçavam, os lábios se grudavam, o beijo quente causava-lhes muito tesão. Ela desprende os braços das mãos de Bruno e o abraça com força, queria mais do que estava acontecendo. Beijava seu pescoço; era beijada no mesmo lugar. Bruno a apertava, sentia a mulher que ele sempre amou, passava a mão em todos os lugares possíveis. Quando ele chegou na virilha, a mulher foi o empurrando aos poucos e, em seguida, joga-o na cama. Ele quer se levantar, mas Natasha vai em cima dele, beija seu peitoral musculoso, suas formas gritantemente definidas. Ele sente muito tesão; ela também. Bruno já está numa respiração ofegante, rápida como requer a situação. Foi então que ela sentou por cima dele e tirou sua camisa. Os seios dela estavam expostos a ele, aquele par de seios que mais pareciam duas laranjas, de formas tão perfeitas e definidas. Ela cai novamente por cima dele, mas ele se vira e também tira a camisa. Logo, as calças, as meias. Ela também já está nua, desfilando seu corpo perfeitamente moldado, traçado a olhos de deuses, devida perfeição que era aquele corpo. Então, fazem amor. Transam, transam tanto que ela berra como uma louca; ele vibra como uma conquista. Ficam tempos e tempos lá, até que a mulher pára, olha para ele e diz:
- Nada mais é como fora um dia...
Bruno, indignado, sai da cama e se veste. Ela fica inerte em sua posição, mas queria dizer algo que não saia de sua boca. Ele se vira para ela e fala:
- Tu foste a única que eu amei nesses anos todos. Era só você que eu sempre quis.
E sai da casa. Fecha a porta, talvez a porta de seus corações. Ela chora, lacrimeja bastante. A boca trêmula não permite que ela diga uma única palavra. Vai até a frente de casa e vê Bruno saindo com seu Palio azul metálico. Ela, sem muitas alternativas, fica lá, deita-se na cama e chora a ida de seu mais perfeito amor. Não teve paciência para suportar a pressão que sua voltaria o faria.
Tirei a tarde para limpar meus livros. Não queiram imaginar a bagunça que está minha casa. Quatro prateleiras estão prontas; restam três. Devo ter mais ou menos uns 800 livros aqui. Variam desde grandes clássicos, como Don Quijote de la Mancha, em espanhol original, até os pockets mais evidentes, como os da coleção Pocket Plus da L&PM, que são bem baratinhos.
Fiquei intrigado com uma coisa: numa das prateleiras, coloquei apenas livros didáticos. Admirei-me por ter três iguais. Não, não os comprei: foram enviados pela editora. Um livro que custa tanto numa livraria, e eu com três. Na verdade, um já repassei, mas há ainda outros dois. Poderia fazer uma grana com eles, não fosse proibida a venda - exemplar de análise do professor. O que leva a editora a mandar tantas vezes a mesma obra? Convencer-me através da repetição? Ou esqueceram que já haviam mandado? Sei lá. O que interessa é a qualidade desses livros.
Cansei de trabalhar com a gramática tradicional. Se eu fosse um gramatiqueiro mais forte, migraria para a neopedagogia da gramática, do Prof. Dequi, do IPUC, de Canoas. Acho que ele tem umas ideias bem interessantes sobre a forma de aprender a construção da língua portuguesa, mas para efeitos de escola parece faltar mais sobre produção textual. A partir desse ano, meus novos alunos trabalharão basicamente com a produção de textos, tendo a gramática apenas como suporte para as dificuldades de escrita. Não dá mais para embasar o ensino de linguagem na sua estrutura, pois acaba se perdendo, na hora de avaliar, muito daquilo que realmente a gurizada vai levar pra vida: a argumentação, a exposição de ideias, a narração de fatos, etc.
É uma limpeza na educação: sai aquilo que é desagregador, que regula mentes; entra o que é libertador, que não se submeterá à ordem comum. O perfil dos educandos não exige mais um conteúdo sem aplicabilidade: já passou da hora de mostrarmos por que tudo deve ser ensinado. Sempre expliquei pros alunos por quais motivos estudamos fonologia, morfologia, sintaxe, semântica; expliquei as relações entre eles para gerar sentido; mostrei dentro de textos e frases como isso acontecia. Não em vão, mas faltava algo para fechar ideias naquelas mentes. E faltava a escrita.
É geral a questão do ensino de gramática ser comum. Só espero que meus colegas não fiquem tão assoberbados de saberem esse ramo do conhecimento que queiram que seus alunos saibam o mesmo. Afinal, dá gosto ver quem conhece bem qualquer coisa, não é? Os educandos também gostam disso. Mas eles não têm culpa se não soubermos fazê-los pessoas melhores, mesmo com todo conhecimento adquirido.
Esse assunto me lembrou de um texto, feito em 2001. Sempre gostei de managers e criei uma historinha, lembrando um pouco do que jogava. Uma pena que não encontrei o texto para postar, devo ter perdido. Padova, era o nome. Droga.
Diversos estudos vem enfatizando a questão da narrativa em games. Tive um colega, na época em que fazia especialização, que montava sua dissertação sobre tal assunto. Passei a me interessar sobre o assunto e refleti algumas vezes.
Pedi que alguns alunos realizassem trabalhos que aproximassem literatura e videogame, justamente pra identificar isso. Apareceram vários: Bully, Warcraft, Devil May Cry, God of War, etc. O problema é que identificavam aproximações apenas com referenciais, como a mitologia, a criação a partir de uma obra ou coisas do gênero. Ninguém falou que, cada vez que avançava mais no jogo, se constituía uma história, se transformava a visão de cada detalhe através das ações realizadas pelo personagem, comandado pelo jogador.
Até em jogos menos complexos e de grande popularidade há ocorrências: quem joga as últimas versões do Pro Evolution Soccer - eu, ao menos, tenho do PS2 - encontra a opção Rumo ao estrelato. Tu configuras um jogador, joga por um clube simples e será observado pelos maiores. De acordo com teu desempenho, será chamado. Assim, constitui uma carreira. É simples, mas também é uma construção narrativa. Não se compara a tudo que podes fazer num jogo antigo como Sincity ou Afterlife, ou os mais recentes, como Age of mithology e derivados, mas nasce uma história.
Tem gente que acha que videogame é só desvio de pensamento, não concorda que possa ser aprendizado. Inclusive é por isso que há jogos proibidos: suscitam pensamentos e ações. Dever-se-ia aproveitar a questão dos jogos realmente como aprendizado para ilustrar como são as condições de vida através das montagens narrativas.
Para terminar esse Natal no blog, coloco um texto de 2002. Tive uma professora na faculdade que resolveu virar freira. Acabou motivando um pequeno texto.
À santidade (2002)
Sorrir. Era olhar para um lado, para outro, e a encontrava. Sorrindo. Sempre. O olhar brilhante, a voz em suave calmaria, serena. Explanar a paixão que sente pelas coisas que faz não é uma tarefa simples para os seres humanos. Para ela, isso era singelo.
A professora expelia palavras encorajantes. Essa sua coragem de mostrar o rosto, deixá-lo descoberto para as surras que levaria pela vida foi sua marca mais evidente. O gosto doce de suas idéias apaixonava seus alunos que se sentiam cada vez mais envolvidos pelas idéias convictas e relevantes dela. Convicção era sua Superiora. A descrença, o inferno.
Certa vez, um sonho lhe desperta. Uma luz, umas pessoas voando, camisolas, penas. É. Talvez retocasse seus líricos pensamentos com pinceladas de magia, inigualáveis pensamentos que a tornariam uma pessoa que, se não atingisse a perfeição a todas as vistas, atingiria sua opção maior: ser feliz.
Foi quando o sonho se tornou realidade. Os pensamentos voaram. Tomaram forças colossais e fizeram brotar um desejo jamais imaginado. Aquela criatura lúdica, crente de si, crente da vida, crente de suas idéias, agora era crente. Um mar de lágrimas brotou por seus olhos. Era o reinício de uma caminhada que traria sua felicidade suprema, sua tranqüilidade eterna.
Chega em sala de aula, comunica seus alunos. O espanto é tal que faz com que eles fiquem boquiabertos. E a singeleza ainda imperava. Um tanto abalada devido à emoção, mas continuava intacta. Dissertou sobre o porquê daquela decisão que soava como fantasmagórica aos pupilos, mas que logo foi entendida. Ela queria apenas encontrar sua felicidade.
Como em todos os momentos em que esteve com eles, a professora proferiu seu emocionado e ideológico discurso, carregado de beleza humana e palavras artísticas: “Vocês não podem ser apenas professores de gramática normativa, aliás, não devem: devem criar, buscar o novo, ousar! Utilizar a posição de vocês, como professores, não para imperar e dizer o que é certo e o que é errado, mas para estimularem seres pensantes! Trazer à essas pobres criaturas, que hoje são esmagadas pelo sistema, um conhecimento que lhes sirva para a vida, não para o mecanicismo...” - e, após alguns segundos de silêncio, diz: “Espero, apenas, que vocês sejam educadores de verdade”.
A despedida emocionada seguiu-se, com o forte abraço e o carinhoso beijo que cada um de seus futuros colegas (que, talvez, não mais seriam) lhes deram. A retribuição vinha em lágrimas, mas lágrimas de alguém que lutou por um ideal que, em sala de aula, com seus estudantes, via ser atingido. Era uma despedida fraterna, tão meiga que nem o mais duro dos doutores ousaria evitar se emocionar.
Foi então que, nessa hora, alguma luz, de muito distante, brilhou para a professora. Uma luz de intensidade enorme, mas só ela via. A luz de que o momento de sua decisão final estava de fronte a si. Era a luz da decisão. Decisão tomada. Ela se dirigiu para a janela, ainda com os acadêmicos na sala. E, bem baixinho, com o reflexo da luz no olhar, pôde dizer: “É isso, sim”.
Todos foram embora. Apenas ela ficou lá, relembrando seus momentos de alegria intensa, de trabalho intenso, de harmonia intensa entre si e seus colegas de sala. De súbito, uma sombra vem à porta e fala: “Vamos! O céu não pode mais esperar”.
Feliz, ela sorri. Estende a mão para que seja levada por esse alguém até seu desejado lugar. Não lhe busca. Levanta-se, caminha em direção à saída da sala. Vê que a faculdade ainda tem pessoas circulando. E vê que a luz não pára de brilhar para si. Volve, arruma seu material e vai embora. Embora. Simplesmente embora.
Chega em casa, um pouco cansada. Já tinha preparado quase tudo. Faltou apenas guardar o material que usara para trabalhar no dia, na estante da sala de sua residência. Todo seu material, seus anos de trabalho, alojados naquela estante. Vê tudo aquilo e pensa: “Valeu a pena mesmo”.
Pega as malas, curva-se em direção à porta. O filho, não mais em casa, deixa-lhe um bilhete dizendo “com carinho, seu filho”, apenas. Sorrindo, guarda o bilhete e sai. Ainda olha para dentro, buscando algo que talvez tenha deixado para trás. Nada mais havia. Apenas as lembranças. Que também levava junto.
Ao colocar seu pequeno pé na rua, sente uma estranha sensação. Uma sensação de medo, de perda. Mas também era uma sensação de ternura, de felicidade, de vida. Principalmente de vida. Às entranhas deleitando a noite, via com o olhar baixo que estava fazendo a coisa certa, mesmo que incerta. E foi nesse momento que ela começou sua caminhada, a mais longa de toda sua vida.
A luz novamente brilhou. Agora, com mais intensidade. Viu tudo embranquecer perante suas vistas. E a voz clamou: “Vamos! Está na nossa hora!” - E, lá de cima, provido da infinitude do céu, a luz em forma de braços gigantes desceu sobre a Terra, estendendo suas palmas para que ela, cada vez mais feliz, pudesse deitar seu corpo, sendo levada para lá. De súbito, a luz apagou. Apenas as estrelas mais brilhantes permaneceram acesas. O clarão baixou. A rua silenciou. Voltou-se ao normal.
É. Eu tive um sonho. Um sonho em que todas as pessoas conseguiam sua felicidade plena. Um sonho em que o mar banhava as belezas marinhas e terrenas; em que o céu brilhava na escuridão mais profunda; em que a Natureza sublimava encanto pelo mundo a fora. Mas só ela teve seu sonho realizado. Porque soube sempre o que quis. Porque soube sempre qual era seu ideal. E era, singelamente, ser feliz.
Pensar em Natal, para muitos, remete ao presente que ganha ou que dá. Livros, filmes, roupas, jogos, calçados, enfeites: tudo é motivação para gastar e ver alguém deslumbrado com o objeto recebido. É uma pena que há quem esqueça de que essa época, antes de ser uma data consumista, é uma data de reflexão.
Como já mencionei em posts anteriores, fiz planos para 2010. Não brotaram do nada: frutos de reflexão contínua. Ainda assim, voltaram-se apenas para minha atuação profissional. Quero poder ser alguém melhor, contudo. Só que não basta eu chegar a essa conclusão sem ao menos experimentar um pouco a retrospectiva.
O psicólogo Joseph Campbell, autor de várias obras relativas ao mito - dentre as quais destaco O herói de mil faces -, fala que diariamente transgredimos barreiras que, por se tornarem tão comuns em nossa vida, já não percebemos o quão útil ela pode ser para nossa personalidade. Alguém realmente modifica apenas quando sente que tudo que o circula e que age sobre si determina sua vida. Das dificuldades tiramos crescimento, coisa e tal. Para vermos nossa caminhada, nossas mudanças e extrair o bom e o ruim: Natal.
Se eu sou alguém, quem fui no princípio? Se traço metas, por que as busco? Se penso nisso, sei que existo - como proporia Descartes -, mas por que repenso e busco tais conclusões? Para justamente que nossa vida ande e atinjamos nossos ideais.
Quando era pequeno, o Natal era repleto de pessoas e muitos presentes. Independentemente da época financeira vivida pela família, pois o quando o preço não ajudava, vinha a qualidade; quando ajudava, a quantidade. Quem lê deve pensar que tive tudo que podia quando pequeno, mas não era bem assim. O que me restou disso foi o que aprendi: não basta um presente de Natal se ele não vier acompanhado de uma boa dose de reflexão.
A partir da obra Literatura para quê?, de Antoine Compagnon, o pensador Marcelo Spalding, da UFRGS, propõe alguns motivos para justificar esse título. Como possivelmente alguns elementos foram presenteados com livros no Natal, somado ao que discutimos ontem, exponho aqui seu ponto de vista, veiculado no Digestivo Cultural.
"Primeiro, não sou daqueles que acham que a literatura torna o homem ou a humanidade melhores. Meu pai deve ter lido meia dúzia de livros em toda sua vida e é uma pessoa boníssima, enquanto pessoas de ética duvidosa têm estantes abarrotadas de clássicos (lidos ou não), e por vezes se jactam em citá-los (Fausto e O Príncipe, não por acaso, entre eles). Segundo, não acho que seja impossível vivermos sem literatura. Uma vez uma professora comentou, na faculdade, que era impossível vivermos sem poesia. Contestei, dizendo que muitas pessoas jamais abriram um livro de poemas, e ela me respondeu que na sociedade moderna muitas vezes as músicas, com suas letras, suprem esse papel. Bela resposta, me convenceu. Assim também nenhuma pessoa pode viver sem narrativas, mas pode viver sem ler romances, pois as narrativas estão no cinema, no teatro, nas telenovelas, nos quadrinhos. Terceiro, não acredito que a literatura ajude alguém a "vencer na vida". Não por culpa da literatura, mas porque "vencer na vida", hoje, significa ter mais dinheiro ou mais poder ou mais respeito, e a literatura por si só não torna ninguém mais rico ou poderoso ou influente. Não por acaso policiais ganham muito mais que professores, e aspirantes a modelos são muito mais valorizada$ que escritores. Sem falar nos jogadores de futebol... Ou seja, parte desse questionamento de literatura para quê tem a ver também com questionamentos mais amplos que devemos fazer sobre a vida. Viver para quê?, pergunto eu. Se for para acumular riquezas e porres e cargos, a literatura não serve para nada mesmo. Não se iluda. Agora se vivemos para conhecer, ampliar os horizontes, descobrir o outro e nós mesmos, explorar aquela enorme fatia do cérebro inexplorada pela maioria dos homens, a literatura é, sim, fundamental. Se valorizamos a liberdade e a diversidade, a literatura é, sim, fundamental. Se queremos indivíduos críticos e ativos socialmente, a literatura é, sim, fundamental." Agora é pensar.
Ganhei um presente de Natal de meu irmão: O outro, de Bernhard Schlink. Este é o mesmo autor daquele livro que virou filme, O leitor - diga-se de passagem, com algumas performances realmente muito boas, como da Kate Winslet. Pela contracapa e pela orelha, parece bastante interessante. É meu segundo livro para ler em 2010, já que adquiri o Capitu sou eu, do Dalton Trevisan.
Leituras de férias. Raramente sei de quem realmente usa esse tempo pra ler. Houve férias em que lia 15, 20 livros, principalmente na época da graduação. Depois veio o trabalho, o cansaço, e as férias ficaram um pouco distantes do meu objeto de trabalho. Há uma aluna, de quem gosto muito, que faz ótimas leituras. Recomendei a ela um livro do Mempo Giardinelli, O décimo inferno e Luna Caliente. Em meio a leituras sobre vampiros e derivados de filmes, ela leu. Gostou. É daqueles livros que não dá pra parar de ler antes que a história acabe, ela me dizia. Fiquei muito satisfeito. Esses dias, a Bibiana e eu fomos ao shopping, e lá ela quis comprar um livro. Ficou com o Clube do filme, do qual está gostando muito também.
Não é possível generaizar e dizer que o livro está acabando. Está aumentando uma camada populacional que, além de ter baixíssimo poder aquisitivo - e livro É caro -, tem uma cultura que não se volta necessariamente para as letras escritas. Muitas vezes são musicadas, desenhadas, pichadas. Mas ainda assim é uma manifestação cultural.
Essas pessoas também curtem histórias, gostam de saber o que acontece com a vida do vizinho, com o enredo da novela das oito, com a doença da mãe da amiga da prima do amado. Fofoca, gente sem o que fazer? Talvez seja preconceito, pois o que elas gostam mesmo é de narrativas. Gostam realmente de conhecer histórias, tal como fazemos ao ler um livro. A pequena diferença é que as suas narrativas são particulares, sem terem sido necessariamente escritas, mas abrangem os mesmos temas universais que com frequência lemos: o amor, a amizade, o ódio, os costumes, a violência. Por que se preocupar, então?
O grande problema talvez more na profundidade das questões. Quanto mais fundo penetramos na mente das personagens ou no enrendo no qual se envolve, mais difícil de diagnosticar, de decifrar, de absorver ideias se torna. Meus alunos reclamam de ler Bartleby, o escriturário, de Hermann Melville, aquele do Moby Dick. É um livro de leitura simples, curto, mas que acabam absorvendo muito pouco: se o personagem "prefere não fazer" nada, por que me intrigo com ele? "Não gostei, sôr"...
Quanto a isso, julgo necessário trabalharmos. A leitura, porém, ocorre frequentemente e não devemos omiti-la, seja de quem for. Não é apenas o livro que resolve a cultura de alguém, pois, como já diriam Lévi-Strauss, Maiakovski, Cooper, entre outros antropólogos, a cultura é firmada pela sociedade através de seus costumes, nunca imposta. Saber observar o que cada um traz como leitura de mundo é praticamente o mesmo que lermos um livro sobre um personagem do dia a dia.
O texto que virá logo abaixo foi um dos que mais elogiaram no Templo XV. Já tem alguns anos, mas espero que ainda se deliciem com a leitura.
Confissões (2003)
É, meu amor... Os dias finalmente passaram! A primavera finalmente floresceu, o calor cedeu, a chuva voltou. Belos como o pôr do sol, como as violetas que brotaram, os dias têm sido de intensa felicidade. Pena que ainda não nos revimos! Mas isso é questão de tempo...
Ontem, lembrava de tua mão acariciando minha face. Tua tez expressiva, o olhar fulminante, apenas a refletir meu sorriso sincero. Teu corpo perto do meu, como se fossemos anjos de uma só asa. Completamo-nos em todos os sentidos. Inclusive naquela vez em que fomos ao Morumbi, ver o jogo da Seleção contra o Paraguai. Pegaste na minha mão, me levaste para lá, me fizeste assistir algo que nunca foi de meu feitio ver. Beijava-me a todo instante, ora nem observando o jogo, ora vibrando com cada lance. Mas eu também te fiz passar por maus bocados, eu sei... Ou seriam bons bocados? Lembras quando estávamos no Pinhal, naquela noite em que partimos a Cidreira, ficando vendo a apresentação do Tchê Barbaridade? Eu sempre soube que tu não gostavas de música gaudéria, apesar de seres um gaúcho legítimo. Entretanto, também sabias que minhas veias de prenda não me separavam de um CTG. Dançaste comigo. A noite toda. Te amei demais naquela noite. Observava teu rosto refinado com meu olhar apaixonado. Sentia teu peito encostado a mim como um colosso inabalável. Sim, eu te quero muito, meu amor...
Naturalmente, não apenas de alegrias vivemos nossos grandes momentos, não é? Ainda ontem, eu falava com a Clarissa a respeito daquele conflito que tivemos por causa dela. Lembro-me da terribilidade que fora. Tudo por causa de seu primeiro namorado! Com certeza, suas vestimentas nunca foram algo que agradasse a mim, menos ainda a ti, mas só por causa disso não seria motivo para debates ininterruptos e agressivos. Ficaste furioso excessivamente quando ela disse que assumira o namoro com aquele rapaz. Aliás, sabias que eles estão juntos até hoje? Realmente parece que a decisão deles não foi precipitada... E, até hoje, remeto apoio incondicional.
Quando partiste, pensei que nos encontraríamos em breve. Porém, parece que o tempo não quer colaborar com nossa vontade. Ao menos, com a minha, não. Espero que ainda seja essa a sua. Faz-me tanta falta, amado... Tuas decisões, teu comportamento elevado, superior... Tua alma próxima... Nossa áurea junta... Somos como estrelas de uma constelação, meu amor... Formamos ela apenas juntos. E, junto a ti, continuo querendo ter pelo resto de minha vida. Longa vida.
A Oswaldo Aranha não tem a mesma graça contigo distante. O União, também não. Os passeios pela Redenção parecem-me vazios. O Praia de Belas anda sem graça. Nosso casebre no Belém Velho nunca mais foi visitado. Nem nossa origem, Nova Petrópolis. Que saudades daquele restaurante em que nos vimos pela primeira vez. Sempre íamos lá. Sempre continuamos indo lá. Nossas visitas à Santa Catarina. Tuas viagens de negócios que eu sempre tive o prazer de te acompanhar, fosse em São Paulo, Buenos Aires, Medellín. Nossa primeira e única viagem para o Oriente. Taiwan, China, Hong Kong, Tailândia, Japão. Culturas belíssimas. Não como as nossas, mas eram muito belas. Mas tudo, para nós, sempre foi nossa capital. Nossa casa no Jardim Lindóia. Teu trabalho no Centro, o meu na Azenha. Tudo saia bem aqui. Problemas? Quando? Para quê tê-los, não é? Ninguém sabia como nossa vida era tão cheia de ventura. Ah, mas isso tudo foi porque soubemos construir...
Agora, ando só. Por que ficas tão distante? Por que não me deixas aproximar de ti? Ou será que sou eu mesma que não permito? Quero estar junto a ti em todos os momentos, todas as situações, todas as alegrias, todas as tristezas. Permita com que eu chegue a... Hm?
- Vovó, hora de irmos, tá tarde...
- Eu sei, minha querida... Ajude-me, por favor...
E assim foi. Saíram do cemitério sem previsão para volta. A doce senhora ainda observa novamente o jazigo do fiel amado, que dorme em paz. Uma lágrima resvala o rosto. Ela se vira. E sai caminhando. Lentamente.
Anteontem, resolvi que faria algo que já realizei outras duas vezes: um novo pós. Como vocês sabem, fiz toda minha especialização na área de Literatura. Não sairei das Letras, mas vou temporariamente migrar para a Linguística, aquela área dos estudos que se preocupa com a linguagem, as línguas, suas estruturas etc. Inscrevi-me para Assessoria Linguística e Revisão Textual. Não me julgo um mau corretor de textos, mas creio que rever algumas questões sempre servem para crescer.
Resolvi também que em 2010 tentarei uma vaga num curso de Doutorado. É o último nível, teoricamente. Para alguns poucos privilegiados, há o chamado pós-doutoramento, que, se não me engano, é o que usa aquela siglinha famosa, o PhD. Não sei se no Brasil o Philosophical Doctor é o Doutor ou o Pós-Doutor.
Lembrei disso porque há uma discussão muito complicada. Já conversei com vários colegas sobre essa questão de aprofundamento de estudos. A maioria deles julga complicado aprofundá-los devido a questões mercadológicas: dificilmente um professor doutor é chamado para trabalhar numa escola, assim como é difícil um doutor sem muita prática pedagógica ou inúmeros artigos, capítulos de livros ou obras publicadas seja chamado numa universidade. De fato: quando fiz o Mestrado, ganhei uma bolsa CNPq, mas a neguei, pois como já trabalhava em escolas não poderia largá-las para me prender apenas aos estudos. Hoje, há ex-colegas desempregados, mas com titulação que os colocariam em faculdades; há quem se rendeu ao Estado e seu baixo salário, por falta de oportunidades.
Claro que diversos outros atenuantes determinam esses fatos. Em contraposição, há um colega que soube, sem aprofundamento de estudos em pós-graduação, montar um tipo de trabalho que só lhe rende benefícios. Através de projetos de saída de campo, ele conhece escolas, seu trabalho é reconhecido e lhe chamam constantemente para mais realizações. Não há segredo pra isso: trabalho é a palavra-chave. Quem busca desenvolvimento pessoal, independentemente de seu nível de escolaridade, consegue chegar a um grande objetivo.
Eu sonho em trabalhar numa universidade, coordenar grupos de pesquisa, palestrar por aí. Só que, se ninguém souber do que faço ou eu não mostrar nada disso, dificilmente chegarei a tal ponto. Quem sabe alguma hora isso se realiza... Enquanto isso, voltarei minhas atenções pros meus estudos, sem me preocupar se isso realmente reverterá nessas realizações. Afinal, já diz aquele velhíssimo ditado popular: "quem espera..."
Não sei se é do interesse geral da nação, mas tenho publicado alguns de meus artigos que veicularam em revistas científicas no Follow Science. São todos trabalhos voltados para a Literatura, sua teoria e sua relação com o cotidiano. Caso queira dar uma espiadinha, clica aqui e veja o que há de bom!
Já tive uma fase mais intensa como escritor. Isso aconteceu quando eu tinha uns 16, 17 anos. Na época, fiz um livro. É. Um livro. Tinha o original guardado num disquete. O advento tecnológico que afetou minha residência fez com que eu o perdesse e nunca mais soubesse de seu paradeiro. Azar. Não era grande coisa mesmo. De um tempo pra cá, alguns alunos pediram para ler o que eu fizera. Os textos que aqui exporei são da época dos 20 anos. Não que faça muito, mas a gente sente a diferença do que é e do que poderia ser o escrito. De qualquer forma, manterei o texto original, sem modificações, para saberem quem foi o escritor Lucas dos primeiros anos. Sei lá, vai que alguém inventa de me estudar um dia... Boa leitura!
Caixinha de Música (2002)
Abre-se a porta. O vento ecoa através das frestas da janela da sala. Ele penetra em seu apartamento, pega alguns restos de jornal e tenta fazer com que o silêncio predomine. Em vão. A força da natureza é mais forte que a vontade do homem. Ao entrar em seu quarto, despe-se. O paletó, a gravata, a camisa. A cinta, as calças, as meias. Deita-se. Sente o corpo flutuar na cama, como se há anos não deitasse. Liga o rádio, ouve algumas notícias, mas logo enoja do que escuta. Inflação, dólar em alta, desemprego; guerra, assaltos, assassinatos. Desliga o rádio. Levanta-se, abre a porta do armário, olha-se no espelho. Vê a barba crescer, sem querer cortá-la. Ou sem força para tal. Declina a cabeça, volve. Vai para a cozinha. Atravessa o corredor escuro até lá chegar. Onze da noite. O telefone parece tocar. Mas não toca. Abre a porta da geladeira. Vazia. Contém apenas uma garrafa d’água e uns docinhos que sua mãe deixara em sua última visita. Há um mês. Resolve beliscar alguma coisa. Mas os doces já não prestavam. Cospe tudo, bota para fora. Uma gota de sangue. Sente o palato machucado. Um arranhão. Nada demais. Limpa a boca na própria cozinha, após alguns gargarejos. Retorna ao quarto. A vida de Marcelo tornou-se um grande tédio. O trabalho, a faculdade. Dois anos separado da ex-esposa. Desde então, sozinho. Não tiveram filhos. Ela sonhava. Ele não quis. Pensava apenas no trabalho, na faculdade. E no corpo da Amélia. Ana sabia de seu tesão pela colega, mas nunca deu importância. Até o momento em que os pegou juntos em pleno lar. No dia seguinte, o crepúsculo da tristeza. Que se arrasta até esse dia. No quarto, encontra um osso de frango. Roído. Deveria ser bastante velho, pois o Toby saiu de casa com a Ana. Velho Toby, deveria estar com seus 13 anos quando ele o viu pela última vez. Adorável. De repente, um ruído. A porta abre-se. Sem tocarem-na. Marcelo levanta-se, vai até a entrada de casa e nada vê além de um vulto negro descendo as escadas do pequeno edifício. Deveria ser seu vizinho do apartamento defronte ao seu, um homem trabalhador, que construiu a vida a duras penas. Gostava muito dele. Após fechar a porta, retorna, novamente, ao quarto. E, no auge da solidão, ele procura algo que lhe afague. Computador, televisão, música, filme. Nada. Nada lhe atrai. Nada o faz concentrar-se. Abre o guarda-roupa, revira, tira suas roupas, busca algo que nem ele sabe o que é. Durante essa tentativa desesperada, caem duas prateleiras do móvel. Algo bate com força no chão. E uma música começa a tocar. E, de súbito, o ambiente torna-se ainda mais melancólico. Ele, estagnado em sua posição, sente o desespero subir pelas entranhas. Olha para o chão. Uma tampa de um lado. A caixa de música do outro. Então, inclina-se. Pega a tampa, com a borda quebrada. Ali, continha um espelho. Agora, um espelho rachado. E se vê, em dimensões distintas. De um lado, aparecia a testa, lisa e sem qualquer marca da idade; do outro, a sua barba por fazer, a boca rosada, um tanto avermelhada pela mancha de sangue que ficara. E, próxima, a caixinha de música, com um protótipo de casal recém casado dançando sobre essa. Marcelo deixa a tampa cair no chão, concretizando o estilhaçar do espelho. Observa a caixa. Sente a música entrando em seu ouvido. Uma lágrima lhe escorre o rosto. A dor enlaça seu coração. Era como se uma nuvem cinzenta pairasse sob a residência do desiludido homem. E ele não tinha mais saída. Levanta-se do chão, pega o objeto sonoro e arrebenta-o contra a parede. Mas a música não pára. Pega-o novamente e joga-o pela janela. Mas a música não pára. Ele quer sair, ele quer correr, mas ele não escapa. Não escapará. Ainda sob forte emoção, veste-se. Meias, calça, cinta. Camisa, apenas. Traja os sapatos. Lava o rosto. Mais uma gota de sangue acaba por sair de sua boca. Não dá a mínima importância. Limpa na camisa. Pronto, abre a porta de casa. Esquece-a aberta. Desce as escadas. E, desde então, nunca mais tiveram notícias.
Vocês devem conhecer aquela obra, bastante famosa aqui no Rio Grande do Sul e em outras regiões do país - provavelmente as que a pediram como leitura obrigatória -, chamada O tempo e o vento. Já faz um bom tempo que comprei a minissérie, lá dos idos anos 80, que veiculou na Rede Globo. É uma obra dividida em três partes - O continente, O retrato e O arquipélago -, em que se conta a trajetória de cerca de 250 anos da história do estado gaúcho. Pois a série global fez o favor de utilizar o título geral para ilustrar apenas O continente.
Não é isso que interessa. O que me ocorre responder no momento é o título deste blog. Como mais de um perguntou, vamos aos fatos.
Lembro vagamente de ter visto na televisão. Lembro, porém, que queria ser bonachão como o Capitão Rodrigo. Não pelas bebedeiras, nem pelas mulherenguices, mas pelo espírito heroico. Aquela coisa de defender sua terra, sua honra, como princípio moral e ético do ser. "Buenas e me espalho: nos pequenos dou de prancha; nos grandes dou de talho" - primeira afirmativa, geradora de indignações e de idolatria.
Essa mesma personagem, tempos depois, apaixonou-se por Bibiana Terra. Personagem de gênio forte, por vezes impulsiva, mas de grande caráter. Adianta, mostrar-se-á uma relação amorosa de muita intensidade, dotada de bons e maus momentos - o que se aproxima bastante da realidade, já que nenhum elemento vive apenas de bons ou de maus momentos. Eis que, inúmeros anos depois, um certo professor também encantou-se com uma Bibiana. Eis que surge o título do blog.
Normalmente, vou ao trabalho de carro. Nesses últimos dias, liguei o rádio, coloquei um de meus cds e lá tocava Can't Help Falling In Love Again. Para os apreciadores de Elvis, um bom som. Para mim, uma versão muito boa.
Elvis Presley foi um baita cantor, encantou muita gente, foi símbolo sexual e tal. E daí? O que ficou foi a reciclagem. Há inúmeros Elvis perdidos pelo mundo, representando-o com performances que me remetem sempre àquela música - que me lembra chiclete -, Tutti-Fruit. Não seria apenas a essa reciclagem que remeto.
A música que citei também tem outros intérpretes. Diga-se de passagem, gosto muito dessa que escuto, do Blackmore's Night. "Quem?" - Bom, não tenho informações muito profundas sobre a banda, mas é de origem celta e faz um som muito próprio do local. Vale a pena escutar. Aliás, isso só justifica a tendência dos dias atuais de reciclar aquilo que já fizera sucesso: covers de Beatles, Rolling Stones; remakes de filmes clássicos, como Fim dos Tempos ou Drácula.
Na literatura, também acontece. Em minha dissertação de Mestrado, trabalhei com A Canção dos Nibelungos. O texto original, datado do século VIII, é belíssimo: a saga de Siegfried pela conquista de Kriemhild, sua ascensão e queda. Na sequência, o casamento de Krienhild com Átila, rei dos Hunos, e toda a derrocada do reino, pela vingança de sua rainha. Há uma versão que busca remontar o episódio mítico, chamado O Anel dos Nibelungos. As histórias tem alguns elos, mas no todo são diferentes. De qualquer forma, o encantamento promovido pelas narrativas é o mesmo, já que o efeito do mito e da fantasia em nossa sociedade é bastante constante - aliás, renderia não apenas um texto, mas um livro inteiro, tratar sobre a estética da recepção, as formas e os motivos que levam os interlocutores a aderirem tais textos, no caso.
Enquanto essas reciclagens se mantêm, nós também nos reciclamos o tempo inteiro. É uma motivação pós-moderna, certamente, na qual nos colocamos e participamos ativamente. Tanto que, se possível, sairei daqui e voltarei minha atenção pro Whiskey In The Jar, do Metallica.
Há um bom tempo me proponho a voltar a escrever. Seja o que for. Devido aos compromissos profissionais, acabei por deixar de lado essa prática tão reavivante de nossa linguagem e que, ao mesmo tempo, é o que nos faz sobreviver perante os acontecimentos mundanos. Afinal, a escrita é a beatificadora de qualquer fala. Ela salva o que temos a dizer, é explorada para novos fins.
Sou Mestre em Teoria da Literatura desde o dia 20 de janeiro de 2009. De lá pra cá, pouco fiz para comprovar tal mérito. Resolvi cursar Ciências Sociais, como forma de explorar outros terrenos e comprovar se as Letras realmente seriam meu contínuo caminho. E são.
Com isso, resolvi aproveitar a entrada no Follow Science pra escrever. Tenho alguns textos da era acadêmica que não são exatamente artigos de luxo, mas que trazem algumas ideias. Nesse embalo, procurarei desenvolver um pouquinho de minha inclinação literária - essa sim que há muito está dormindo.
No meio dessas festas de final de ano e início de 2010, algo vocês terão para leitura.