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Asas Da Realidade
Levantar de manhã e, muitas vezes,
não ver o sol, apenas a escuridão da noite. Levanta-se cedo para
continuar nossa rotina, permanecer na nossa realidade. Sair da cama,
ir até o banheiro, fazer todas as necessidades. Sair, vestir-se, ir
à cozinha, preparar um lanche, um café, um suco. Ouvindo os
noticiários no rádio, lendo um jornal. Depois de tudo pronto,
rumamos, todos nós, para um mesmo lugar: o colégio. Ao dar a
primeira pegada na rua, sabendo que nunca mais faremos o mesmo
percurso, um aperto no coração me corrói. Caminhando pela rua, as
lembranças me são presentes, como se recém tivessem acontecido. Os
desejos de “bom dia”, “boa aula”, nesses dias são mais
presentes do que nunca. Ver que tudo isso está próximo de acabar,
faz com que todas aquelas lágrimas conservadas durante anos para
esse momento, comecem a brotar, escorrer-me o rosto. Esse dia trará
nossa nova realidade.
Chegando ao colégio, nosso local de
estudo, de trabalho, de amizades, de amores, a saudade passa a bater
como se já tivesse acontecido. Entrando lá, o primeiro “bom dia”.
Retribuímos, normalmente. Mas era a ultima vez. Subindo as escadas,
percorrendo os corredores, lembro-me de cada passo dado aqui dentro.
Desde o jardim A1, lá nos nossos princípios da vida, quando ainda
tínhamos nossos 3, 4 anos de idade. Brincando pelos pátios,
correndo pelos corredores como crianças que fomos e eternamente
seremos. Buscando atravessar barreiras que nem sonhávamos que
existia. Anos maravilhosos que se foram, e não voltam mais. Passando
por todas as séries, atravessando o A2, o Jardim B, entrando no 1º
grau, na 1ª serie, indo para a 2ª, passando para a 3ª, chegando na
4ª serie. Esses tempos que nos mostravam as primeiras brigas, os
primeiros desafetos, mas que traziam a realidade de termos amigos,
aqueles que nós sempre poderíamos contar. Nossas primeiras saídas
com eles, indo a parques, indo a festas de aniversario, indo jogar
futebol, indo na casa de um ou de outro jogar videogame. Nessa época,
até nossos primeiros amores aconteciam, aqueles platônicos, em que
você queria alguém que não lhe queria, que queria seu melhor
amigo, cujo amigo queria uma outra, que era apaixonada por você.
Chegava-se a apostar quem “namoraria” primeiro. A infância, fase
maravilhosa, de descobrimentos, de energia, de inocência.
Parado em frente à nossa sala,
olhando pela janela que dá ao pátio, observo o prédio do 1º grau.
Mas agora, pensando na 5ª serie. Estávamos entrando na segunda fase
do 1º grau. Primeira vez que tivemos aulas de matérias, cada
matéria com seu professor. Primeira aula de matemática, de
português, de ciências, de estudos sociais. Nosso primeiro contato
com o descobrimento, de onde o homem saiu, como a Terra surgiu,
nossas origens, nossos futuros. Desta fase, para a 6ª serie, desta
para a 7ª. Nesse tempo, muitos de nós descobrimos a arte de beijar,
seu gosto, sua beleza, sua sensualidade, seu medo, seu horror, seu
nojo. É, nojo. Você lembra do seu primeiro beijo? Pois é, que
coisa nojenta aquela língua do parceiro entrando em contato com a
sua. Hoje, isso é a coisa mais maravilhosa que podemos presenciar
numa relação a dois. Eram tempos cada vez mais novos, perguntas
sobre sexo, sobre como beijar, como é o órgão sexual masculino,
feminino. Quer saber como se beija? “Treine com uma maçã” –
Quem não ouviu isso? Mesmo sendo de uma forma ou outra uma bobagem,
testando numa maçã, você sentia o gosto do prazer, despertava cada
vez mais à vontade de querer fazer aquilo. Depois de tudo isso, veio
a 8ª serie, ultimo ano do 1º grau. Era, também, o ultimo ano de
muitos de nós. Os pais já diziam para pensar em colégios novos,
lugares mais fortes, pois a vida se tornaria vida mesmo, depois que o
colégio acabasse. Foi um ano maravilhoso, despertava-se cada vez
mais o sentimento pelo próximo. A amizade que nos rondava era cada
vez mais firme, mais sólida. Ninguém esperava que tivessem mais do
que isso. Pensávamos. Aquele ano pareceu-me passar depressa, pareceu
tão fácil, normal. Chegando o final do ano, víamos que tudo não
seria como era, naquele tempo. Nossa formatura do 1º grau foi, ao
mesmo tempo, divertida e comovente, pois alguns de nós nos deixaram,
mas vários continuaram. Foi lindo poder ver aquele pessoal chorando,
comovido com a saída do amigo para outro lugar, em busca de novos
horizontes, novos caminhos para o futuro. Abraçavam-se, beijavam-se,
como se nunca mais fossem se ver. Porém, a única coisa que mudaria
mesmo, seriam seus ambientes. Todos sabiam disso. Mas ver aquela
pessoa, tão adorada, tão amiga, que esteve com você nesse tempo
todo, foram cerca de 10 anos de convivência, tudo num mesmo lugar,
no nosso mesmo céu.
Mais um ano passa, ingressamos no
segundo grau. É nesse prédio que estou agora, nessas salas que já
freqüentei, que todos os grandes momentos da vida aconteceram. Se
não foram os melhores, ao menos foram os mais recentes, recordações
mais vivas de nossas mentes. Bate para o primeiro período. Entrando
na sala, junto de todos que estavam do lado de fora comigo, passo a
me lembrar do 1º ano. Nossa, quanta gente nova! Numericamente, não
lembro, mas que fariam parte de nossas vidas, isso sim, fariam com
certeza. Naquele tempo, conheci muita gente nova, pois era uma turma
nova, onde eu não conhecia muitos, mas os que conhecia sabia que
eram meus amigos. Assim foi fácil se enturmar, logo nos primeiros
dias, com as gurias que sentavam ao nosso lado. Mais tarde, isso foi
generalizando, aumentando cada vez mais. Quando pude ver, já tinha
conversado com todo o pessoal. Claro, formação de amizade ainda não
havia acontecido, mas já era um início. No primeiro ano, começou o
maior laço de amizade existente entre todos nós. Já estávamos
mais maduros, não pensávamos mais como crianças, mas como
adolescentes em busca de nossas conquistas, de permanecer com tudo o
que tinha de bom, melhorar cada vez mais. Uma realidade que
atormentava nossos pensamentos passou a existir entre nós: as
drogas. Alguns de nossos amigos, que haviam passado por isso, ou
estavam passando, não eram mais os mesmos. Isso acabou afastando
alguns, atormentando seus pais, deixando até os amigos desgostosos
com suas presenças. Houve quem soube livrar-se desse problema. Há
quem permanece até hoje. Mas com isso, também pudemos aprender as
conseqüências, os problemas, tudo que envolve esse tipo de coisa.
Coisa, isso mesmo. Droga só pode ser tratada como coisa.
Na troca de período, já estávamos
conversando sobre como foi nosso 2º ano. Nossa turma estava formada,
continuaria até hoje. Mesmo existindo muitos grupos subdivididos
dentro de nossa turma, sabíamos que sempre fomos unidos. Ou
pensávamos. Esse ano foi de muita luta para alguns, momentos em que
amigos precisaram ajudar, de uma forma ou de outra, seu próximo.
Muita gente teve seu ano comprometido por se deixar relaxar nessa
temporada. Muitos, em relação aos outros anos, pegaram dependência.
Porém, muita coisa acontecia nesse ano. Histórias de sexo, drogas,
acontecimentos constantes na vida de alguns. Amor nunca foi uma
palavra predominante entre nós, mas a cada dia que se passava,
podiam-se ver casais rodando nossa sala de aula, a sala dos outros.
Acho que, no grupo em que sempre permaneci (e permanecerei
eternamente), amizade sempre foi e sempre será a maior constante
entre nós. Não vejo muitas perspectivas de mudança, pelo menos
agora. Apesar de ter alguns de nós que contavam altas histórias de
relacionamento, nunca nos deixamos de lado. Não que os demais
deixassem, mas nunca permitimos que nosso parceiro estivesse em
primeiro plano, relacionado a nós.
Chega a hora do recreio. Última vez
que desço até o bar da escola, a fim de comprar algum lanche. Um
prensado, um cachorro-quente, uma torrada? Não sei, mas será o
último que comerei. Chego lá, converso um pouco com o Paulo, mas
logo saio, o movimento já aumentava. Na saída do bar, olhei para
dentro. Aquele lugar cheio, berros para todos os lados, Vanderlei
pedindo organização a todos. Suspirando saia de lá, olhei para a
esquerda: o corredor da 6ª série, futuro do colégio. Olhava para a
escada, gurias conversando. No corredor, no caminho que dava acesso
ao pátio, a gurizada da 8ª série, da 7ª, do 1º ano. Riam,
conversavam, gargalhavam, berravam. Era tudo a última vez. Fui até
o pátio, sentei-me no banco da primeira galeria do ginásio, junto
ao pessoal. Uns com os olhos fixos no chão, outros conversando
animados. Eu com meu lanche. Ao tocar o sinal, naquela hora, acho que
todos nós tivemos a mesma impressão: era o último dia de aula.
Nós, alunos do último ano do colégio. De repente, ouve-se um
suspiro. Logo outro. Viro-me e vejo duas amigas se abraçando. Agora
sim, era o início do fim, fim de uma história que iniciou 13 anos
atrás. Em seguida via-se um grupo junto, olhando com caras de
surpresa, de medo, de insegurança, de inocência. Eu estava entre
eles. Tentava esconder os olhos vermelhos, já lacrimejados, mas era
difícil. Aquela cena comovia demais meu coração. Consegui me
conter. Pelo menos nessa hora.
Soou o sinal, era hora de voltarmos
para sala. Alguns chorando, outros rindo, demais sérios. Eram os
três últimos períodos. Logo, entramos em aula. Nesse tempo,
resolvemos relembrar todo nosso ano, esse ano, no ano 2000, éramos
os formandos do último ano do século, início do novo milênio.
Centenário de nosso ambiente, a escola. Era o ano em que o Sévigné
completava 100 anos. No início do ano, caras novas, iam entrando de
tempos em tempos. Até em agosto entrava gente. Novos amigos? Não
sei. No mínimo, seriam novas pessoas que iriam desfrutas de nossa
hospitalidade, de nossa amizade, de novos seres humanos. Foi um ano
de muita dificuldade para muitos, dentro dos estudos, incluindo-me
entre estes. Talvez esse ano fique marcado em todos nós por termos
feito das colas nossos estudos, atingindo nossos objetivos.
Trapaceamos, é verdade, mas todos sabiam e ninguém impediu nossa
conquista. Foi um ano de muitas revelações. Pessoas que pensávamos
não ser de um jeito, eram assim. Este ano, com certeza, foi o ano em
que todos nós soubemos expor nossos sentimentos, explicitar essas
marcas que temos dentro de nossos corações que fazem as pessoas
humanas como são. Brigamos e nos ajudamos, colocamos tudo o que
pensávamos a flor da pele, nunca hesitamos em dizer “sim” ou
“não”. Mostramos ser homens e mulheres de verdade ao expor
nossos pensamentos, ao dizer o que vinha na cabeça. Mostramos que,
definitivamente, não éramos mais crianças. Em muitas atitudes,
seremos até o fim da vida, mas em pensamento, nunca mais seremos
assim. Esse foi o ano de completa união, se não entre todos, entre
a grande maioria.
Soa o sinal, é o último período.
Acho que todos haviam assimilado bem que era o final. Fim do colégio,
não o fim de nossas vidas. Mais 50 minutos e seríamos candidatos a
uma vaga num vestibular. Mais uma vez, junto à janela, olho o pátio,
mas não antes de olhar o céu, ver aquele azul claro maravilhoso,
sem nuvens, tendência de um dia perfeito. Observando o horizonte, o
que cada um de nós seriamos. Advogados, médicos, professores,
administradores, economistas, artistas, biólogos, matemáticos, mas
acima de tudo, homens e mulheres. No pátio, uma turma de 1º ano
jogando futebol. Era aula de Educação Física. De repente, um dos
garotos pela a bola, dribla 4, 5, 6 colegas e faz o gol. Queria poder
ter feito isso, mas nunca tive habilidade para tal. Agora nem tempo
tenho mais. Mas um dia, se Deus quiser, voltarei.
Entramos para o último período. A
passos lentos, entramos sala adentro. Muitos cabisbaixos, outros
normais, como se fosse um dia como outro qualquer, mesmo sabendo que
não seria assim. A professor discursa, diz o quanto foi bom
trabalhar conosco, ter-nos como alunos. Logo, chega a coordenadora,
emocionada. Soltando lágrimas, ela fala, discursa, faz com que cada
um de nós deixe escorrer seu choro. Ninguém teve vergonha,
mostraram o que realmente eram: humanos. Em seguida, se ouviu o choro
desesperado de uma amiga. Por traz de mim, sinto alguém me cutucar.
Um amigo, chorando, sem mover os lábios, abre os braços e os
envolta por detrás de mim. Encosto minha cabeça no seu ombro e
choro também. Quando me separo dele, olho para os lados e vejo
aquela multidão. Multidão de pessoas? Não. Multidão de amizade,
de amor, de tristeza, de agonia, de desespero, de saudade. Era o fim.
Faltavam poucos minutos. A professora despede-se de nós, deixa-nos
em sala de aula, curtindo nossos último momentos. Soa o sinal.
Ficamos em aula. Passavam as pessoas, olhavam para dentro de nossa
sala, viam-nos abraçados, chorando, emocionados. De repente, um
aplauso. Logo em seguida, outro. Assim foi indo. Quando ficamos
atentos a isso, uma multidão nos olhava, alguns sorrindo, outros
chorando, muitos mesclando ambas coisas. Acho que eles notaram o
quanto nós éramos importantes para nós mesmos. Assim, começamos
a sair. Eu ainda não havia arrumado meu material, ainda deveria
fazer isso. Todos saíram. Sobraram algumas almas além de mim. Eles
foram saindo, fiquei lá dentro. O último que saia, antes de
desaparecer definitivamente, questionou-me: “Não vais?” -
respondi-lhe que fosse, eu já iria. Mas não foi o que aconteceu.
Sentei-me na classe, fitava os olhos em meu caderno, lembrava cada
vez mais de todos os momentos em que passamos juntos. Folhava o
caderno, via a matéria de biologia, as Leis de Mendel; passava pela
matemática, deparei-me com as pirâmides; passei pela química e vi
a cinética; física, encontrei a queda livre; historia, achei as
revoluções chinesa, cubana, queda do socialismo; português, vi uma
das matérias que mais odiei, o período misto. Assim foi.
Levantei-me, olhava para o quadro negro. Procurei um giz. Encontrei.
Um giz branco. Não hesitei em escrever o que me veio na cabeça
naquele instante:
“Asas da realidade
Levante-me cada vez mais e mais
Mostre-me um caminho para ser
Livre, eternamente com vocês
Acho que encontrei esse caminho
A cada dia, crescendo forte
Mas ainda há muito para dizer
Além de muito o que fazer”
Agora todos nós nos perguntamos:
Realmente valeu a pena? Internem-me caso eu diga que não. Claro que
valeu, e muito. Descobrimos o real sentido da vida, descobrimos que
sozinhos não somos ninguém. Descobrimos que a cada dia que passar,
teremos que mostrar a nós mesmos o que somos, a que viemos, o que
seremos. Agora, somos futuros universitários, primeira fase de
nossas vidas termina aqui. Começaremos tudo de novo, a partir de
agora. Para mim, escritor dessa crônica que trouxe nossa realidade,
pôde descobrir uma coisa que levarei comigo até os últimos dias:
Homem que é homem chora, não prende o choro, mostra e diz com
orgulho que pode fazer parte da trajetória de vida de alguém.